Antes foi um tempo de delícias, tudo que a sua vista alcança era nosso, vivíamos felizes e não havia mal. Nossas eram essas águas infindas e essas matas sem par, que hoje são apenas lembrança e vestígio. Tínhamos tudo, não precisávamos lutar pelo nosso devido quinhão de céu azul. Tudo era bom e belo e nós não fazíamos caso do perigo iminente. Éramos puros e vivíamos a época da inocência no nosso gigantesco jardim das delícias, mas para eles, para eles nós éramos tolos, pois ignorávamos o mal, e por isso não vimos neles o outro, mas sim irmãos e havia tanta fartura, que apesar da sua cor pardacenta que veio enfeiar nossos trópicos benditos, nós os acolhemos, os ensinamos como sobreviver na mata, contamos nossos segredos e lhes entregamos a ciência de discernir os bons dos maus frutos; porém assim que eles se acostumaram a esse sol desusado nas suas frias terras de origem, cresceram, se multiplicaram, ficaram mais fortes do que nós e com parcimônia, mas constantemente, foram se imiscuindo no nosso lar.
Eram seres alienígenas, sim, alienígenas, porque aqueles com quem chegavam traziam consigo alimárias e grãos e frutos e ervas que nós não conhecíamos e foram eles que plantaram essa outra floresta, que foi substituindo a nossa, que ardia dia e noite para nosso constante desespero. A mata deles era de pedra, maninha para nós, pois eles não nos ensinaram seus soturnos segredos e assim nós, que éramos senhores do mundo, perdemos o mandato do céu e ficamos cada vez mais confinados a guetos, a pequenos bosques, macegas e capoeiras, onde nossa gente minguava dia e noite, pois tudo mudava, o regime das chuvas, a temperatura. E enquanto nosso alimento rareava, eles se revigoravam com a nossa fartura, comiam da nossa fome, pois cada verde que queimava era uma estaca cinza que nascia, e assim nos tornamos tristes, moles, enfermiços, desbotamos, quase perdemos a cor, definhamos e nossa magreza aflitiva era testemunha do nosso infortúnio, em uma só palavra, “emudecemos”. Eles nos pagaram o bem que nós os tínhamos feitos com o mal e era isso que nós não compreendíamos, contudo, quando a vitória deles parecia absoluta, quando eles eram milhares, milhões até e nós centenas, surgiu um libertador entre nós, que guiou o povo descrente, alquebrado e taciturno para deixar de lado antigas crenças e tomar o que é nosso e que nos foi usurpado, só então tivemos a singela ousadia de cruzar o céu da mata cinza, da mata que eles diziam deles, com o nosso colorido amarelo, só assim redescobrimos a alegria de viver, mas não foi fácil, nada é fácil, eles reagiram com violência e seus bandos barulhentos e hostis perseguiam nossos pares, porém nós nada tínhamos a perder e aos poucos fomos aprendendo a ciência daquele mundo pardo, a começar pelos quintais, os jardins, os parques. Aprendemos que uma de suas árvores alienígenas tinha um fruto doce e sumarento e ainda amarelo, um doce que nos revigorava para a batalha. Na nossa fúria santa aprendemos a disputar esse fruto, que alguns chamam manga, até mesmo com os morcegos, e isso ao cair da tarde quando o cansaço nos atinge e nós já não vemos bem.
Assim, revigorados com esse novo alimento, aos poucos fomos vencendo as batalhas, ganhando terreno e só então pudemos enfim gritar sem medo pela madrugada a fora, bem naquele instante em que a luz se anuncia, que esta terra e não outra, é a terra dos bem-te-vis, esse nosso nome, esse nosso grito, que hoje ressoa em cada canto dessa selva que eles chamam cidade, em cada árvore, amedrontando os pardais, que em um tempo que não tardará muito, expulsaremos para além dos mares e para a fria e feia e triste terra de onde eles partiram para semear a danação no meio de nós. Que assim seja e que não tarde.
Eram seres alienígenas, sim, alienígenas, porque aqueles com quem chegavam traziam consigo alimárias e grãos e frutos e ervas que nós não conhecíamos e foram eles que plantaram essa outra floresta, que foi substituindo a nossa, que ardia dia e noite para nosso constante desespero. A mata deles era de pedra, maninha para nós, pois eles não nos ensinaram seus soturnos segredos e assim nós, que éramos senhores do mundo, perdemos o mandato do céu e ficamos cada vez mais confinados a guetos, a pequenos bosques, macegas e capoeiras, onde nossa gente minguava dia e noite, pois tudo mudava, o regime das chuvas, a temperatura. E enquanto nosso alimento rareava, eles se revigoravam com a nossa fartura, comiam da nossa fome, pois cada verde que queimava era uma estaca cinza que nascia, e assim nos tornamos tristes, moles, enfermiços, desbotamos, quase perdemos a cor, definhamos e nossa magreza aflitiva era testemunha do nosso infortúnio, em uma só palavra, “emudecemos”. Eles nos pagaram o bem que nós os tínhamos feitos com o mal e era isso que nós não compreendíamos, contudo, quando a vitória deles parecia absoluta, quando eles eram milhares, milhões até e nós centenas, surgiu um libertador entre nós, que guiou o povo descrente, alquebrado e taciturno para deixar de lado antigas crenças e tomar o que é nosso e que nos foi usurpado, só então tivemos a singela ousadia de cruzar o céu da mata cinza, da mata que eles diziam deles, com o nosso colorido amarelo, só assim redescobrimos a alegria de viver, mas não foi fácil, nada é fácil, eles reagiram com violência e seus bandos barulhentos e hostis perseguiam nossos pares, porém nós nada tínhamos a perder e aos poucos fomos aprendendo a ciência daquele mundo pardo, a começar pelos quintais, os jardins, os parques. Aprendemos que uma de suas árvores alienígenas tinha um fruto doce e sumarento e ainda amarelo, um doce que nos revigorava para a batalha. Na nossa fúria santa aprendemos a disputar esse fruto, que alguns chamam manga, até mesmo com os morcegos, e isso ao cair da tarde quando o cansaço nos atinge e nós já não vemos bem.
Assim, revigorados com esse novo alimento, aos poucos fomos vencendo as batalhas, ganhando terreno e só então pudemos enfim gritar sem medo pela madrugada a fora, bem naquele instante em que a luz se anuncia, que esta terra e não outra, é a terra dos bem-te-vis, esse nosso nome, esse nosso grito, que hoje ressoa em cada canto dessa selva que eles chamam cidade, em cada árvore, amedrontando os pardais, que em um tempo que não tardará muito, expulsaremos para além dos mares e para a fria e feia e triste terra de onde eles partiram para semear a danação no meio de nós. Que assim seja e que não tarde.
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